segunda-feira, 18 de julho de 2011

Devorador de Sombras

Há um gênero literário que surgiu independentemente em diversas [épocas e nações: o roteiro do morto nas regiões ultraterrenas. O Céu e o Inferno de Swedenborg, as escrituras gnósticas, o Bardo Thödol dos tibetanos (título que, segundos Evans-Wentz, deve ser traduzido por Libertação por Audição no Plano da Pós-Morte) e o Livro Egípcio dos Mortos não esgotam os exemplos possível. As "afinidades e diferenças" dos dois últimos têm merecido a atenção dos eruditos; baste-nos repetir aqui que, para o manual tibetano, o outro mundo é tão ilusório quanto este, e, para o egípcio, é real e objetivo.

Há nos dois textos um tribunal de divindades, algumas com cabeça de macacos; nos dois, uma ponderação das virtudes e das culpas. No Livro dos Mortos, uma pena e um coração ocupam os pratos da balança; no Bardo Thödol, pedrinhas de cor branca e negra. Os tibetanos têm demônios que oficiam como ferozes verdugos; os egípcios, o devorador das sombras.

O morto jura não ter sido a causa de fome ou de pranto, não ter matado e não ter mandado matar, não ter roubado os alimentos funerários, não ter falsificado as medidas, não ter tirado o leite da boca da criança, não ter afastado do pasto os animais, não ter capturado os pássaros dos deuses.

Se ele mentir, os quarenta e dois juízes o entregarão ao devorador, "que é, na frente, crocodilo, no meio leão e, atrás, hipopótamo". É auxiliado por outro animal, Babai, do qual só sabemos que é assombroso e que Plutarco o identifica com um titã, pai da Quimera.

Fonte: O Livros dos Seres Imaginários - Jorge Luís Borges e Margarita Guerrero

Sereias

Ordinariamente contam-se três: Parténope, Leucósia e Lígea, nomes gregos que evocam as idéias de candura, de brancura e de harmonia.

Conta-se que no tempo do rapto de Prosérpina, as Sereias foram à Sicília, e que Ceres, para puni-las por não haverem socorrido a sua filha, mudou-as em aves. Ovídio, ao contrário, diz que as Sereias, desoladas com o rapto de Prosérpina, pediram aos deuses que lhes dessem asas para que fossem procurar a sua jovem companheira por toda a terra. Habitavam rochedos escarpados sobre as margens do mar, entre a ilha de Capri e a costa de Itália.O oráculo predissera às Sereias que elas viveriam tanto tempo quanto pudessem deter os navegantes à sua passagem; mas se um só passasse sem para sempre ficar preso ao encanto das suas vozes e das suas palavras, elas morreriam. Por isso essas feiticeiras, sempre em vigília, não deixavam de deter pela sua harmonia todos os que chegavam perto delas e que cometiam a imprudência de escutar os seus cantos. Elas tão bem os encantavam e os seduziam que eles não pensavam mais no seu país, na sua família, em si mesmos; esqueciam de beber e de comer, e morriam por falta de alimento. A costa vizinha estava toda branca dos ossos daqueles que assim haviam perecido.

Entretanto, quando os Argonautas passaram nas suas paragens, elas fizeram vãos esforços para atraí-los. Orfeu, que estava embarcado no navio, tomou a sua lira e as encantou a tal ponto que elas emudeceram e atiraram os instrumentos ao mar.Ulisses, obrigado a passar com o seu navio adiante das Sereias, mas advertido por Circe, tapou com cera as orelhas de todos os seus companheiros, e se fez amarrar, de pés e mãos, a um mastro. Além disso, proibiu que o desligassem se, por acaso, ouvindo a voz da Sereias, ele exprimisse o desejo de parar. Não foram inúteis essas precauções. Ulisses, mal ouviu as suas doces palavras e as suas promessas sedutoras, apesar do aviso que recebera e da certeza de morrer, deu ordem aos companheiros que o soltassem, o que felizmente eles não fizeram. As Sereias, não tendo podido deter Ulisses precipitaram-se no mar, e as pequenas ilhas rochosas que habitavam, defronte do promontório da Lucárnia foram chamadas Sirenusas.

As Sereias são representadas ora com cabeça de mulher e corpo de pássaro, ora com todo o busto feminino e a forma de ave, da cintura até os pés. Nas mãos têm instrumentos: uma empunha uma lira, outra duas flautas, e a terceira gaitas campestres ou um rolo de música, como para cantar. Também pintam-nas com um espelho. Não há nem um autor antigo que nos tenha representado as Sereias como mulheres-peixe, como muita gente atualmente as representam.

Saci

O Saci-Pererê é uma assombração das matas e áreas rurais. Pertence, originalmente, ao folclore do sul do Brasil. Sua figura, muito pequenina, é a de um negrinho perneta. Usa um gorro vermelho, fuma um cachimbo rudimentar, o pito, e tem as mãos furadas. O mito do saci é o resultado da convergência e mistura das crenças das três etnias que, historicamente, entre a colonização e o Império, formaram o povo brasileiro: índios, portugueses e negros.

Entre os tupi-guarani, relaciona-se a uma ave chamada Matinta-Perê [ou Matinta-Pereira] que, postada sobre uma só perna, emite um canto sombrio considerado de mau-agouro. Até hoje, uma das características e sinal da presença do saci é o seu assovio. A tradição, nascida no extremo sul, migrou com os índios para o centro-oeste e sudeste chegando, eventualmente ao norte-nordeste do país. É de origem indígena a denominação popular da ave: Saci, também chamada de "Peito-ferido".

Os portugueses fundiram a idéia da ave com as também pequenas criaturas dos bosques europeus, anõezinhos, alguns malvados, outros, apenas travessos que aparecem nos contos de fadas, como no clássico de Grimm Rumpelstiltskin: "um anãozinho muito feio dançando em uma roda de fogo com uma perna só". A idéia do pássaro foi, então, antropomorfizada. Mais tarde, os negros forneceram sua contribuição concebendo os sacis como almas penadas de crianças mestiças, bastardas, fruto das relações entre escravas e senhores, rejeitadas e freqüentemente abandonadas nas matas.

Finalmente, quando o mito se consolidava, entre os séculos XVIII e XIX, surgiu uma versão sobre o nascimento dos sacis, descrita por Monteiro Lobato [que também era pesquisador do folclore nacional] em sua obra infanto-juvenil O Saci: eles nasceriam nos seguimentos do bambu gigante chamado Taquaruçu onde se desenvolveriam até que, estando plenamente e magicamente formados, incluindo o gorro e o pito, rompiam as hastes e ganhavam o mundo passando a freqüentar fazendas e vilarejos onde praticam suas "artes": gorar ovos, chupar o sangue das vacas e cavalos, destes, também se ocupando em trançar-lhes as crinas, rezando o milho nas panelas para frustrar o desabrochar das pipocas, azedando o leite, gorando ovos, roubando fumo, que tanto apreciam, fazendo sumir pequenos objetos para perturbar a ordem doméstica, confundindo o caminho dos tropeiros e viajantes, assustando os animais com seu peculiar assovio.Essas travessuras, o saci faz somente para se divertir.

Como assombração que é, o saci tem o poder de aparecer e desaparecer por encanto e capturá-lo é é um procedimento relativamente difícil Segundo a tradição, relatada por Monteiro Lobato, a circunstância ideal para pegar um saci é em dias de ventania, quando aparecem redemoinhos de poeira e folhas secas. Produzir esses redemoinhos é uma das diversões dos sacis que, girando sobre a perna única, posicionam-se no centro da formação. O "caçador", munido com uma peneira "cruzeta" [que tem duas faixas em cruz como reforço no bojo], uma garrafa de vidro bem escuro e uma rolha também marcada com uma cruz na parte superior, aproxima-se do redemoinho e lançando a peneira bem no meio, aprisiona o duende.

SaciEm seguida, introduz a boca da garrafa levantando minimamente a peneira: o saci, buscando a escuridão, refugia-se dentro da garrafa que, então, deve ser rapidamente arrolhada. Lá permanecerá invisível, mais um truque para fazer com que pensem que conseguiu escapar. No entanto, em um dia de muito calor, quando o captor estiver imerso em profunda sonolência, ele se mostrará. Quem, além de capturar, conseguir se apossar do gorro do duende, adquire poder sobre ele, que se torna um escravo de quem realizar a proeza.

FONTES:
CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. São Paulo: Ed. da USP, 1983.
LOBATO, Monteiro. O Saci. São Paulo: Brasiliense, 1969.
ROMERO, Silvio. Contos Populares do Brasil. São Paulo: Ed. da USP, 1985.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Excertos de 'A Sociedade dos Vivos'

Héctor Ricardo Leis

Perder a vida; falecer, finar-se, morrer-se, expirar, perecer [Sin., muitos deles bras., pop. ou de gíria: abotoar, abotoar o paletó, adormecer no Senhor, apagar, apitar, assentar o cabelo, bafuntar, bater a alcatra na terra ingrata, bater a(s) bota(s), bater a caçoleta, bater a canastra, bater a pacuera, bater com a cola na cerca, bater o pacau, bater o prego, bater o trinta-e-um, bater o trinta-e-um-de-roda, botar o bloco na rua, comer capim pela raiz, dar a alma a Deus, dar a alma ao Criador, dar à casca, dar à espinha, dar a lonca, dar a ossada, dar com o rabo na cerca, dar o couro às varas, dar o último alento, defuntar, desaparecer, descansar, descer à cova, descer a terra, descer ao túmulo, desencarnar, desinfetar o beco, desocupar o beco, desviver, dizer adeus ao mundo, embarcar, embarcar deste mundo para um melhor, empacotar, entregar a alma a Deus, entregar a alma ao Diabo, entregar a rapadura, espichar, espichar a canela, esticar, esticar a canela, esticar o cambito, esticar o pernil, estuporar(-se), expirar, fechar o paletó, fechar os olhos, fenecer, finar(-se), ir para a cidade dos pés juntos, ir para a Cacuia, ir para a Cucuia, ir para bom lugar, ir para o Acre, ir para o beleléu, ir para o outro mundo, ir-se, ir(-se) desta para melhor, largar a casca, passar, passar desta para melhor, passar desta para melhor vida, pifar, pitar macaia, quebrar a tira, render a alma ao Criador, render o espírito, vestir o paletó de madeira, vestir o pijama de madeira, virar presunto] (Verbete do Dicionário Aurélio Eletrônico - V.2.0).

O sexo nunca foi algo desconhecido para os seres humanos, mas a civilização moderna o colocou no centro de um dispositivo que o transformou em "sexualidade". De acordo com Foucault, através desse mecanismo, o sexo acabou sendo um ponto denso das relações de poder na sociedade moderna. Sem eufemismo, hoje nos encontramos na época mais sexualizada de toda a História; do mesmo modo, a morte, que certamente nunca foi um fenômeno ignorado ou pouco central para a humanidade, está sendo alvo de um enorme dispositivo que a devassa sem piedade, transformando-a em outra coisa.

Sabemos que todas as grandes civilizações tiveram uma arte amatória, mas este não é o caso da sociedade ocidental moderna (que parece consolar-se desta carência, com a pornografia). Embora seja um fato menos conhecido, também se sabe que todas as culturas, exceto a cultura moderna, possuem uma ars moriendi (quem precisar uma prova acadêmica pode recorrer à Enciclopédia Britânica, onde, apesar do conhecido cuidado pela perspectiva histórica, da parte dos organizadores, não se encontrará nenhum verbete para apresentar a "arte de morrer", nem sequer em relação às culturas orientais).

Na maioria das culturas pré-modernas, a arte de morrer tem uma hierarquia não menor que a arte de viver. Existem textos que mostram até uma maior centralidade da primeira, como no caso de O Livro Tibetano dos Mortos ou O Livro Egípcio dos Mortos. Mas a leitura deste tipo de textos nem sempre foi uma exceção no Ocidente. Durante todo o Renascimento e nas primeiras fases da modernidade, conservaram-se os ensinamentos para aprender a morrer, através da leitura de textos e tratados medievais (Evans-Wentz, 1988). De fato, várias igrejas primitivas do Cristianismo (como, por exemplo, a grega, a siríaca, a armênia e a copta) incorporaram em seus rituais muitos princípios da arte de morrer. Mas que tipo de ensinamento sobre a morte poderíamos pretender hoje se, como acontece, todos os esforços parecem estar dirigidos a ocultar a morte? É obvio que qualquer que seja a cultura, a existência deste tipo de ensinamentos ou de uma arte de morrer, de modo geral, supõe dar um grande valor a esse momento. Certamente, a modernidade aponta em outra direção.

A propósito da morte detectamos um "buraco negro", uma zona obscura e mal resolvida da condição humana na sociedade moderna, talvez de maior importância que aquela referida à questão sexual. Pelo menos, com a saída da arte erótica, tivemos a entrada da ciência da sexualidade. Mas a saída da arte de morrer não foi substituída por nada, apenas pelo silêncio. Se queremos chamar "ciência da morte" a isto que se ensina aos pacientes nas salas dos hospitais, especialmente nas salas de terapia intensiva, certamente estaremos confundindo as coisas. Com dita ciência, aqueles que morrem são preparados a esperar sempre um pouco mais de vida, assim até o derradeiro minuto. Isto é, mal poderíamos chamar de "ciência da morte" a uma ciência médica que não tem nada a dizer sobre o fenômeno da morte, já que seu principal objetivo é encontrar a cura para todas as causas da morte.

Para comprovar o anterior, podemos ir a qualquer hospital e verificar que, por mais terminal que seja a condição do paciente, em qualquer circunstância, sempre se lhe fala sobre as alternativas de vida e nunca sobre as de morte (lembremos que o que acontece nos hospitais é decisivo para estudar este fenômeno, já que é aí onde morre a ampla maioria das pessoas .

A sociedade da alta modernidade parece promover a morte "pornográfica" no mesmo grau que oculta a experiência direta da morte. Neste sentido, é um sintoma ilustrativo de nossa cultura a profunda rejeição que sentem os adultos de falar sobre a morte com seus filhos ou de permitir que tenham contato com a morte de familiares, a fim de evitar-lhes o conhecimento de algo que acreditam fazer-lhes mal...

...o homem moderno encontra no silêncio dos hospitais a morte que ele "merece", à qual corresponde a sua impossibilidade de encontrar um sentido individual para ela.

...(Edgar Morin (1997) observa que tão cedo como em 1969, num colóquio sobre problemas humanos da biologia (organizado em Nova York pelo Salk Institute), já era possível ouvir alguém pedir a constituição urgente de um Comitê pela Abolição da Morte, sem provocar risos ou espanto no público. Bauman (1997) nos ajuda a lembrar, a propósito de um conto de Borges, o que estamos tentando esquecer: que ser imortal é coisa comum, que todas as criaturas são imortais...)

Existem basicamente três formas de enfrentar a morte (cf. Elias, 1987). Muitas religiões interpretam a morte como passagem para outra vida (circunstância que - é bom lembrar - não necessariamente deve ser interpretada como uma boa notícia). Podemos também fitar os olhos da morte, considerando nossa finitude um dado essencial da existência humana (o ser humano é um "ser-para-a-morte", definiu Heidegger (1951), e filosofar significa "aprender a morrer", nas palavras de Montaigne (1948)). Temos boas razões para suspeitar que os "secularizados" seres humanos que vivem na sociedade moderna tendem a acreditar cada vez menos na primeira visão. Do mesmo modo, se consultados, diriam que a segunda perspectiva é, pelo menos, depressiva e fora de época (uma prova indireta disto é que nos amplos questionários aplicados pela equipe de Inglehart (1997) em 43 países, para medir mudanças de valores, não aparece nenhuma pergunta sobre a morte; o mesmo tipo de sinal aparece nos bancos de dados dos departamentos de filosofia das universidades, nos quais comprovamos que atualmente nem os filósofos se ocupam deste tema).

A terceira possibilidade ou alternativa é simples, deduz-se por exclusão (ou abandono) das anteriores. Consiste em evitar todo pensamento sobre a morte, ocultando e reprimindo a presença do fenômeno da morte quanto seja possível. Elias desdobra esta perspectiva em um inesperado recurso à imortalidade, para o qual - segundo ele afirma - existe uma forte tendência na sociedade moderna. Assim, a morte seria evitada não apenas pela repressão de sua presença, mas também pela crença na imortalidade pessoal ("outros morrem, mas não eu"). Este insight de Elias (pouco aproveitado por ele mesmo) me parece de fundamental importância para entender a condição humana na sociedade atual. Talvez seja necessária uma pergunta óbvia: como é possível imaginar a existência de uma tendência significativa de indivíduos que acreditam na imortalidade pessoal, vivendo numa "sociedade reflexiva", numa sociedade que gira em torno da multiplicação constante de riscos que os indivíduos devem enfrentar com ajuda de sua própria razão, de uma forma ou de outra? Não encontramos, nas obras mais destacadas de autores importantes que pensam a modernidade (citemos o caso de Beck (1992) e Giddens (1991), por exemplo), alguma análise que possa explicar corretamente a hipótese de Elias.

O verdadeiro desafio não é hoje tornar mais sustentável ou mais reflexiva a sociedade moderna. A rigor, isto é secundário em face da necessidade de nutrir o homem contemporâneo com as vivências dos tempos antigos, quando a vida era um campo de amor e morte, sincrético e mutável, entre os deuses, os homens e a natureza (Leis, 1999).